Caro Machado,
Não sejas temperamental. Ainda faltam algumas horas até o fim do dia. Tenho tempo para uma modesta homenagem a sua ausência.
Cento e um anos? Quem diria que ainda te leriam por aqui.
Às vezes penso que o destino se cumpriu, meu caro. Tu mesmo foste um dos primeiros a dizer que a história deve ser contada por aqueles que já foram. O velho Brás Cubas está aí para me confirmar.
Sabes, Machado, nem sempre tenho certeza se algum dia tu realmente foste embora. Nem sempre. OK, talvez tenha faltado o livro definitivo, a coroação depois das Memórias Póstumas. Embora eu não concorde, os críticos vivem dizendo: “Machado foi perfeito, mas faltou dar continuidade ao seu melhor romance”. Chatos, ora bolas, tu os sabes.
Enfim, mal consigo imaginar se um dia surgirá outro brasileiro bacana, a escrever o cotidiano de modo tão refinado e certeiro. Graciliano e Guimarães foram muito bons, mas faltou-lhes a ironia, a graça. Eram comunistas, pombas. Viam leveza apenas no sofrimento do homem. Tu, meu velho, foste diferente: a angústia humana era teu gracejo.
Talvez não te recordes, mas fomos apresentados lá pelo final da década de 1980. Uma professora de redação nos aproximou. Fomos amigos desde então, meu caro.
Quiçá seja impossível lhe agradecer pelos papos sempre intermináveis, por dizer o que não se queria falar. Acima de tudo, por teu conforto dentro da angústia.
Ora, é verdade. Todos sabemos que o homem escreve para matar a morte. Tu não o fizeste diferente: redigiste o primeiro livro escrito por um morto. Mataste a morte duas vezes.
Alguns de tua época não te perdoaram por ter escrito sobre a vida assim, tão despudoradamente. Deixaste-os nus perante todos, camaradinha. Ironicamente, talvez por isso, tens a admiração que mereces. De qualquer forma, não há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que o próprio autor do ato, tu mesmo te gabavas de dizer.
As coisas não estão boas por aqui, sabes. Ontem lançaram uma terceira edição de “A Cabana” e o Dan Brown continua a se esfalfar na língua do Bardo. Há, até, uma geringonça que promete matar os livros. O Paulo Coelho, também ele, mantém a produção. Esquecidos, meu amigo, não lembram que a imaginação e o espírito têm limites. Parecem não ter aprendido que escrever é uma mera questão de colocar acentos e, assim, continuam a florear o papel.
Continuam, eles, a não nos respeitar – na verdade, estão longe disso. Ainda bem que tu não estás aqui para saber de algumas coisas.
Embora alguns amigos digam que tu estás datado, todos continuam a lê-lo – e não só por quinze meses e onze contos de réis. Eu sorrio e sigo em frente: o melhor drama está no espectador e não no palco, lembra-me.
Sinto saudades, sobretudo. A patroa, respeitosa, também sente tua falta. Sempre falamos de ti. Outros amigos - sábios - mandam lembranças. Sentem a nostalgia de tua imoralidade.
Continuamos, pois. Sem sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres ou brocardos jurídicos. Claro, os discursos de sobremesa continuam a exigir esses floreios. Nós, todavia, leitores teus, entendemos a ironia e ficamos calados quando batem a ponta da faca no meio do copo e pedem a palavra. De modo desbragado, eles falam. Nós continuamos quietos, Machado, a esperar um telefonema teu.
Até mais ver. Abraços e recomendações a Dona Carolina.
Não sejas temperamental. Ainda faltam algumas horas até o fim do dia. Tenho tempo para uma modesta homenagem a sua ausência.
Cento e um anos? Quem diria que ainda te leriam por aqui.
Às vezes penso que o destino se cumpriu, meu caro. Tu mesmo foste um dos primeiros a dizer que a história deve ser contada por aqueles que já foram. O velho Brás Cubas está aí para me confirmar.
Sabes, Machado, nem sempre tenho certeza se algum dia tu realmente foste embora. Nem sempre. OK, talvez tenha faltado o livro definitivo, a coroação depois das Memórias Póstumas. Embora eu não concorde, os críticos vivem dizendo: “Machado foi perfeito, mas faltou dar continuidade ao seu melhor romance”. Chatos, ora bolas, tu os sabes.
Enfim, mal consigo imaginar se um dia surgirá outro brasileiro bacana, a escrever o cotidiano de modo tão refinado e certeiro. Graciliano e Guimarães foram muito bons, mas faltou-lhes a ironia, a graça. Eram comunistas, pombas. Viam leveza apenas no sofrimento do homem. Tu, meu velho, foste diferente: a angústia humana era teu gracejo.
Talvez não te recordes, mas fomos apresentados lá pelo final da década de 1980. Uma professora de redação nos aproximou. Fomos amigos desde então, meu caro.
Quiçá seja impossível lhe agradecer pelos papos sempre intermináveis, por dizer o que não se queria falar. Acima de tudo, por teu conforto dentro da angústia.
Ora, é verdade. Todos sabemos que o homem escreve para matar a morte. Tu não o fizeste diferente: redigiste o primeiro livro escrito por um morto. Mataste a morte duas vezes.
Alguns de tua época não te perdoaram por ter escrito sobre a vida assim, tão despudoradamente. Deixaste-os nus perante todos, camaradinha. Ironicamente, talvez por isso, tens a admiração que mereces. De qualquer forma, não há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que o próprio autor do ato, tu mesmo te gabavas de dizer.
As coisas não estão boas por aqui, sabes. Ontem lançaram uma terceira edição de “A Cabana” e o Dan Brown continua a se esfalfar na língua do Bardo. Há, até, uma geringonça que promete matar os livros. O Paulo Coelho, também ele, mantém a produção. Esquecidos, meu amigo, não lembram que a imaginação e o espírito têm limites. Parecem não ter aprendido que escrever é uma mera questão de colocar acentos e, assim, continuam a florear o papel.
Continuam, eles, a não nos respeitar – na verdade, estão longe disso. Ainda bem que tu não estás aqui para saber de algumas coisas.
Embora alguns amigos digam que tu estás datado, todos continuam a lê-lo – e não só por quinze meses e onze contos de réis. Eu sorrio e sigo em frente: o melhor drama está no espectador e não no palco, lembra-me.
Sinto saudades, sobretudo. A patroa, respeitosa, também sente tua falta. Sempre falamos de ti. Outros amigos - sábios - mandam lembranças. Sentem a nostalgia de tua imoralidade.
Continuamos, pois. Sem sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres ou brocardos jurídicos. Claro, os discursos de sobremesa continuam a exigir esses floreios. Nós, todavia, leitores teus, entendemos a ironia e ficamos calados quando batem a ponta da faca no meio do copo e pedem a palavra. De modo desbragado, eles falam. Nós continuamos quietos, Machado, a esperar um telefonema teu.
Até mais ver. Abraços e recomendações a Dona Carolina.
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