Em uma de suas mais conhecidas aventuras, o barão de Munchausen atravessava um pântano movediço e, subitamente, percebeu que seu cavalo afundava no brejo. Sem outro meio de salvar a si e ao animal, o mentiroso lorde não teve dúvida: puxou pelos próprios cabelos e, assim, o cavalo pôde saltar até encontrar terra firme.
A história é fantasiosa e bastante exagerada, mas serve de alegoria para os tempos em que vivemos. No último domingo, por exemplo, o jornal O Globo utilizou-se desse tipo de construção “mágico-realista” na tentativa de inculcar algum tempero liberal no debate das eleições.
Puxando pelos próprios cabelos, o jornalão publicou matéria de capa com a seguinte manchete: “
Cem milhões de brasileiros vivem com dinheiro público”. A enormidade do número provocou uma dúvida: não é possível, 52% da população vivendo do governo? Ora bolas, a ser verdade tal afirmativa, o país torna-se inviável. Ademais, como fica o setor privado diante deste quadro: não emprega ninguém?
Após ler a reportagem, restaram evidentes duas conclusões: a primeira, foi a certeza de ter lido uma matéria liberal, muito ao gosto da atual oposição; a segunda, foi a reforçada convicção de que esse mesmo grupo oposicionista é ruim de dar dó.
Ao longo do texto, o repórter analisa algumas afirmativas do economista Raul Velloso. Para além da renomada competência de Velloso, os cálculos são de uma pobreza ímpar. De acordo com O Globo, cerca de 48 milhões de brasileiros dependem diretamente do dinheiro arrecadado por impostos - aqui inclusos pensionistas, aposentados, bolsistas e outros mais. Por meio dessa generalização*, segue o economista:
“Como, na sua grande maioria, esses pagamentos se configuram em renda familiar, o número de beneficiados é bem maior. Se levado em conta que essa renda ajuda a manter ao menos duas pessoas, a quantidade de brasileiros que vivem de recursos advindos da arrecadação tributária sobe para cerca de 100 milhões de pessoas”.
Chegamos ao número mágico, enfim: 100.000.000 de preguiçosos, para usar uma expressão do saudoso Presidente Fernando Henrique Cardoso. Em síntese, a reportagem, ao utilizar-se do total de pessoas supostamente mantidas pelo estado, tenta repisar a velha tecla de que o governo Lula contratou pessoas demais.
Fosse um pouco mais sofisticado, o número até poderia ser crível. Todavia, tal como se apresenta, faz lembrar do Barão da mentira. A realidade, felizmente, é muito diversa.
Em recente
relatório, preparado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, os números são mais transparentes do que conta O Globo. Não exatamente um órgão partidário dos governos sociais, a OCDE diz que a quantidade de pessoas empregadas pelo estado brasileiro segue ritmo muito bom.
Em outras palavras, o estudo diz que a proporção de empregos públicos em relação à força total de trabalho no Brasil é relativamente baixa na comparação com países desenvolvidos. Segundo a análise, o total de servidores públicos brasileiros, incluindo as empresas estatais, representa 12% do total de empregos do país. Para se ter uma idéia, a média das percentagens dos servidores públicos nos 31 países analisados, em relação aos empregos totais, é de 22%. Estamos muito bem, portanto.
Na seqüência do estudo, a OCDE diz que, entre 1995 e 2003, o presidente Cardoso exonerou/demitiu 85 mil pessoas, caindo de cerca de 570 mil para 485 mil empregados estatais. No governo Lula, ao contrário do que diz a imprensa, não houve inchaço da máquina, haja vista que, até agora, o total de servidores e empregados públicos é de 540 mil. Número ainda menor do que aquele à época do governo Cardoso, quase dez anos atrás.
Ora, o país cresceu e modernizou-se. Precisa, portanto, de um corpo de servidores e agentes estatais que possa suprir a atual demanda nacional. O que o argumento oposicionista e liberal precisa entender é que a República não é mais um bem de família, a ser tratado por poucos. A modernidade não comporta o conceito de “estado mínimo”, reversamente incutido na matéria de O Globo.
Acima de tudo, o recurso do jornal carioca mostra-se mentiroso e ineficaz por si só. Se o intuito era alavancar o pleito dos partidos da oposição, a matéria figura estratégia impossível.
A se seguir o exemplo de Munchausen, uma mentira que se pretende tornar realidade, não pode o candidato paulista – calvo como é – puxar pelos cabelos que lhe faltam. A fim de fugir do atoleiro no qual, por hora, afunda sua campanha, recomendável seriam estratégias mais inteligentes e honrosas à sabedoria do eleitor.