Quando as pessoas perguntam-me sobre meus pensamentos acerca do Rio de Janeiro, sinto sempre um certo desconforto. Carioca desterrado, sei como supostamente devo responder: com tristeza, desapontamento e, talvez, raiva. Invariavelmente, entretanto, tento desviar do assunto, ou falar de forma mais neutra possível.
Isso porque, no fundo, a violência na cidade nunca me atingiu diretamente – ou a meus amigos. Meus contemporâneos e eu sempre tivemos relativa indiferença frente aos tiroteios; os horrores dos crimes e suas implicações demoníacas soavam distantes, estrangeiros até. Na verdade, a violência era, simplesmente, um flash que marcava a descontinuidade característica da degradação na antiga capital federal.
Em 2004, quando vim morar em Brasília, anos antes das atuais bestialidades, o Rio de Janeiro era, ao menos para mim, um lugar onde ainda se podia viver. Apesar da violência já latente, creio que as pessoas de minha geração viam os bandidos – e toda a noção de patologia social – como alienígenas. A ardente crença no distanciamento da brutalidade era vista, em nossa entediada consciência “burguesa”, como eco de um acreditar romântico na violência. Para nós, os brutos e assassinos jamais deixariam os morros para se aventurar na maravilhosa Zona Sul. Tais memórias faziam parte de meu imaginário até recentemente.
Semana passada estive no Rio de Janeiro para visitar meus pais e, para dizer o mínimo, fiquei desesperançado. As principais referências ao passado idílico outrora mantidas em minha cabeça simplesmente desapareceram. Hoje, a violência e suas crises estão de tal forma instaladas na cidade que, ouso dizer, transformaram-se no equivalente cultural de música de elevador – tamanha a indiferença com a qual a população trata o problema.
De fato, o carioca é incomum em sua habilidade de atar choques e distúrbios, gradualmente fazendo deles uma coisa neutra. Ao contrario do senso comum, entretanto, o imaginário “bandoleiro” na cultura 021 não é muito diferente dos traficantes com fuzis AR-15 que esbarram em você nos bailes funks ao redor da cidade: as armas e as músicas presentes nesses locais são uma declaração moral, não estética como querem fazer crer certos sociólogos.
O problema é de tal forma tamanho que alguns organismos internacionais estão elevando os protocolos de segurança adotados para a Cidade Maravilhosa. Por exemplo, a fim de orientar as viagens de seus funcionários, as Nações Unidas têm uma escala de níveis de segurança começando na "Fase 1" (Precaução) e terminando na "Fase 5" (Evacuação). Desde fins de 2006 o Rio de Janeiro foi classificado como local "Fase 1". Dessa forma, funcionários em viagem para lá, mesmo que a passeio, precisam preencher um formulário avisando o Departamento de Segurança da ONU quando ocorrerá o “passeio”, em que vôo e horários, qual o local de hospedagem, quais os acompanhantes, e qual a data de retorno. Tudo isso no intuito de possibilitar a evacuação do funcionário com rapidez e segurança caso seja agravada a situação.
Nos documentos, há uma seção "Travel Advisories" em que um texto realista alerta acerca dos riscos que se assume ao ir ao Rio de Janeiro. Vale citar um trecho:
“As forças de segurança conduzem freqüentes operações armadas contra facções do tráfico de drogas que estão em controle de diversas favelas espalhadas pela cidade. Balas perdidas, rajadas de balas e o indiscriminado uso de munição de alta velocidade e armamento pesado podem transformar qualquer favela num cenário perigoso e volátil, especialmente no caso de intervenção da polícia ou conflitos entre diferentes facções de traficantes. Visitantes são mais vulneráveis a tais incidentes devido ao seu desconhecimento do local e falta de experiência. Portanto, todos os viajantes são aconselhados a evitar a proximidade das favelas. Adicionalmente, tem havido um aumento de assaltos à mão armada nas vias de acesso do Aeroporto Internacional à Zona Sul, onde a maioria dos visitantes internacionais ficam. Evite passar à noite na Linha Vermelha ou Linha Amarela, que são vias expressas ligando o Aeroporto Internacional à Zona Sul, o centro da cidade e subúrbios. Se você desembarcar no Aeroporto Internacional durante a noite, considere passar a noite no Hotel do Aeroporto. Enquanto no Rio de Janeiro, dê preferência a rádio-táxis registrados já que eles são considerados os mais seguros, ou peça orientações ao concièrge do seu hotel. Devido a disputas em curso com os controladores de tráfego aéreo, vôos podem se atrasar, serem cancelados e/ou desviados de seus destinos iniciais. Assim, viajantes chegando ou fazendo conexões em vôos no Rio de Janeiro são aconselhados a requerer um security clearance mesmo que não haja expectativa de deixarem o Aeroporto. (...)”
Como se percebe, a situação é grotesca. E pode piorar ainda mais: recente reportagem do jornal “O Globo” afirma que traficantes da Rocinha estão formando associações com o MST, especialmente com um de seus líderes, José Rainha. Decerto, a cidade não é para amadores e o assunto parece ainda estar muito longe de ser resolvido.
>>Little by Little; Oasis; The Best Bands Ever
>> Travessuras da Menina Má; Mário Vargas Llosa; Alfagarra
p.s.: dado que o livro citado acima é editado pela Alfagarra, lembro post anterior para dizer que o jornal El País está sendo impresso no Brasil. Agora, com preços realísticos, é possível ler um dos melhores jornais do planeta também em terras tupiniquins. Não consigo imaginar iniciativa mais poderosa para um "esforço pela integração cultural".