Tuesday, June 23, 2009

Pornopopéia

Acabei de ler o último fenômeno hype da literatura brasileira: “Pornopopéia”. Malgrado tenha sido uma leitura muito divertida, o livro deixou-me uma sensação ambígua. Sinceramente, não sei dizer se o texto é bom ou ruim. Soa estranho, mas vou tentar explicar.

O autor, Reinaldo Moraes, utiliza-se da língua portuguesa com total desbunde e pouco respeito ao formalismo. De certa forma, ele introduz sujeira, humor, inteligência e falta de modos por meio de vocabulários e sintaxes ao mesmo tempo ricos e desregrados. E isso é a parte boa.

Parece, sem exageros, uma mistura de Guimarães Rosa com Jack Kerouac e William Burroughs, tudo mais ou menos representado no Grande Lebowski. Estranhamente, o livrão (quase 500 páginas) transcorre prazeroso, com uma leitura que me foi rápida - a despeito dos muitos palavrões e de alguma gratuidade em relação às passagens com sexo.

Ao longo do livro, o personagem principal, Zeca, envolve-se em todo tipo de porralouquice, enfurnando-se em altíssimas doses de álcool, drogas pesadas e pornografia grosseira. Apesar de tudo isso – e de o sujeito ser a antítese do herói -, o tal zequinha carrega grande empatia. Em alguns momentos é impossível não torcer para que suas loucuras dêem certo ou que ele consiga se livrar das furadas nas quais se mete constantemente.

Cineasta falido, viciado e frequentador contumaz da Rua Augusta, o cara é um beatnik pós-moderno: muito inteligente e culto, mas desvinculado de qualquer ética ou cordialidade. Sobretudo, o Sr. José Carlos é voltado puramente para seu “eu” pragmático e individualista (não é redundância, leia e entenda). Não à toa, lembrei-me imediatamente do início de Trainspotting, “choose life”, citado dias atrás por aqui: Zeca limita-se a choose his life.

A leitura é instigante, quase impossível de parar. O problema é que, em algumas passagens, o autor carrega demais nas tintas, tornando o resultado meio exagerado – o que não estraga as partes engraçadas e as boas sacadas textuais. Por exemplo, é um prazer procurar citações ocultas no livro: as loucuras vocabulares, unificando a cultura do personagem à literatura clássica, estão presentes em toda a obra.

Decerto, não é um livro que o Governo Federal possa distribuir às crianças do ensino médio paulista. Todavia, é estranho sentir prazer na leitura dessa fórmula ultraexagerada. Grosso modo, o autor extrapola tanto nas tintas que acaba quase por comprometer a segunda parte do livro, quando nosso zequinha chega em Porangatuba (praia fictícia). O segundo trecho é visivelmente mais fraco do que o primeiro. Daí o motivo de minhas duvidosas qualificações de “bom ou ruim”, conforme escrevi acima.

Estranho, pois é. Tudo tão esquisito que, acho, esse post também ficou assimétrico. Por favor, leiam as linhas iniciais do primeiro capítulo e digam o que acham. Para aqueles que gostarem, boa sorte no mundo pornopopéico:

“Vai, senta o rabo sujo nessa porra de cadeira giratória emperrada e trabalha, trabalha, fiadaputa. Taí o computinha zumbindo na sua frente. Vai, mano, põe na tua cabeça ferrada duma vez por todas: roteiro de vídeo institucional. Não é cinema, não é epopéia, não é arte. É — repita comigo — vídeo institucional. Pra ganhar o pão, babaca. E o pó. E a breja. E a brenfa. É cine-sabujice empresarial mesmo, e tá acabado. Cê tá careca de fazer essas merdas. Então, faz, e não enche o saco. Porra, tu roda até pornô de quinta pro Silas, aquele escroto do caralho, vai ter agora “bloqueio criativo” por causa dum institucionalzinho de merda? Faça-me o favor.
Ok, chega de papo. É só dirigir a porra da tua mente pra nova linha de embutidos de frango da Granja Itaquerambu. Podia ser qualquer outro tema, os cristais de Maurício de Nassau, a cavalgada das Valquírias, a vingança dos baobás contra o Pequeno Príncipe. Que diferença faz? Pensa que são os embutidos de frango do Nassau, a cavalgada das mortadelas, a vingança dos salsichões contra o Pequeno Salame. Pensa no target do vídeo: seres humanos a quem coube o karma nesta encarnação de vender no atacado os produtos da Itaquerambu. Pensa no evento em que o teu vídeo vai passar — vários eventos, aliás, todos no mesmo dia em todas as filiais do Brasil. Os seres humanos vendedores de embutidos verão teu vídeo e serão apresentados ao salsichão, ao salame e até à mortadela de frango, heresias saudáveis em matéria de junkyfood que a Itaquerambu vai lançar no mercado. Mesmo a tradicional salsicha e a insuperável lingüiça de frango vão ser relançadas com outra formulação, segundo eles dizem. Quer dizer, em vez do jornal reciclado de praxe, os putos vão adicionar algum tipo de pasta de lixo orgânico pasteurizado na mistura, imagino, mais uma contribuição da Itaquerambu para um planeta sustentável.
Porra, mas eu sou cineasta, caralho. Artista. Não nasci pra rodar vídeo institucional. E de embutidos de frango, inda por cima, caceta!
Calma, calma. Pensa que o teu vídeo será visto “de Passo Fundo a Quixeramobim, do Rio de Janeiro a Corumbá”, como disse o Zuba, ao sentir minha reação pouco eufórica diante do tema. “E capricha na linguagem brasileira universal, tá?”, foi o que ele me pediu, como se linguagem brasileira universal fosse uma das opções do Final Draft ou do Magic Screen Writer. Você clica em LBU e seu texto será entendido nos pampas, serrados, praias, selvas, semi-áridos e caatingas do país, sem contar os aglomerados urbanos e seus múltiplos guetos. Teu único filme de cinema até agora, por exemplo, nunca passou em tantos lugares ao mesmo tempo. Na caatinga, por exemplo, nunca foi visto. Não que se saiba.
Volto a perguntar: qual a diferença entre arte e embutidos de frango? Ou melhor: por que embutidos de frango não podem se transformar em arte?
Mas não precisa pensar nisso agora, nem em merda nenhuma que não seja frango embutido. Faz logo essa porra, porra. É bico: oito minutos de duração, um curta-metragem. Não vai matar o artista que há em você, amice. Ou havia. Ou nunca houve nem haverá. Foda-se.
É isso aí: vídeo institucional, embutidos de frango, Granja Itaquerambu. Beleza.
O que fode é o prazo. Sempre a porra do prazo. Tá ligado que esse roteiro tem que estar escrito, aprovado, rodado, entregue em mídia DVCAM, e exibido pros vendedores até 15 dias antes do lançamento da campanha na mídia? Ou seja, daqui a nove dias. Você devia ter chamado um bosta dum roteirista qualquer pra te ajudar, desses que filam cigarro e cerveja de mesa em mesa na Merça e não perdem chance de puxar uma lousa e dar aula sobre Hal Hartley e a narrativa cinematográfica interior aos substratos descontínuos da consciência dos personagens pra alguma gostosinha basbaque de peitinhos soltos dentro de uma camiseta de pano fino. Conheço vários roteiristas desse naipe. Dúzias deles, na verdade. Tudo uma corja de bebum cafungueiro desempregado du caraio. Por uma peteca de pó e duas Original você contrata na hora um deles. Se calhar, o infeliz ainda leva teu carro no mecânico pra trocar a fricção e te faz o obséquio de encarar uma fila de banco pra pagar tuas contas atrasadas.
Bullshit. Não preciso, nunca precisei de roteirista nenhum. Merda por merda, deixa que eu mesmo chuto. Só que dessa vez travei geral. E o cara da Itaquerambu tá no pé do Zuba, que tá no meu pé, que tô em pé de guerra com os embutidos de frango. Ridículo, isso. Fala sério: nem uma réles ideiazinha pro vídeo pintou ainda na tua cabeça, meu filho. Nem a porra duma idéia de merda.
Pois é, nem a idéia.
Tá foda.
Embutidos de frango.
Foda.”
>> No ha parado de llover; Maná; Arde El Cielo
>> Retalhos; Craig Thompson; Quadrinhos na Cia

4 comments:

Ariete Nasulicz said...
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Ariete Nasulicz said...

É engraçado como nós nos metamorfoseamos ao longo da vida. Há alguns anos, eu não titubearia em ler um livro de tal natureza. Li boa parte da literatura beatnik: Kerouac, Bukowski, Tom Wolfe. No entanto, para mim, hoje, o underground perdeu muito do seu "glamour". Antes havia uma aura de rebeldia, era um prazer subversivo. Era arte, uma arte degenerada, é bem verdade, mas ainda assim, arte. Hoje tudo se banalizou. A arte de escrever palavrões e obscenidades foi engolida pelo circuito "mainstream". E esse é o grande problema da modernidade, como já denunciava Walter Benjamin: tudo vira produto... e a decadência também perdeu a sua aura.

Sumac said...

Hey, Guy.

The post got me thinking... Well, thinking about evolution in language and narrative. Precisely put by Your Truly. I feel, however, intimidated - perhaps the correct word would be conservative or even sceptical - by contemporary works of literature. I'm sure your point of view is correct. It has been for a number of other recommendations. I'll surely take this book into consideration.

Cheers...

Renato Feltrin said...

Caros,

Acho que é exatamente isso que me incomodou tanto no livro: a decadência também perdeu sua aura. Tudo tornou-se banalizado. Causa certo desconforto, pois é.

O mais estranho é que não consigo parar de pensar no livro e na história. É tanta maluquice que fica difícil conceber alguém que viva conforme o personagem principal, ao mesmo tempo no qual tenho quase certeza de existir muito gente por aí que deve se aproximar bastante dos esteriótipos caricaturados no texto.

De qualquer forma, vale a leitura. E muito obrigado pelos comentários.