Após dois anos de guerra contra um câncer atroz e um último mês particularmente duro, morreu meu tio, ontem. Partiu cedo.
Mesmo com nossa inicial correria em busca de passagens e de acomodar os compromissos diários, não foi possível ir até o Rio de Janeiro. A brutalidade da doença e o sofrimento final recomendavam uma cerimônia rápida e inconciliável com os horários dos aviões.
De certa forma, é estranho e difícil juntar os cacos quando se está longe. Pois é.
Tio Sérgio era calado, taciturno até, mas adorava viver. Tinha a casa sempre cheia, gostava de vê-la desse modo. Em geral, nos muitos verões em que viajávamos todos, havia sempre cervejas, churrascos e alegria.
Nasceu no Rio de Janeiro, Itaboraí, em casa, como se costumava fazer antigamente. Incapaz de brigar – abominava confusões -, era um dos maiores conciliadores que conheci. Possuía, ainda, um total fascínio pelo que era novo. E, por isso, foi a pessoa mais absolutamente sem rancor que jamais conheci.
A memória mais antiga que possuo para com ele é a de um churrasco em particular. Começo dos anos 80, no sítio em Itaboraí. Estou na piscina, dia azul-dourado (o carioca entende), 40ºC, início de verão no Rio de Janeiro. Sentado em uma bóia, com metade das pernas na borda da piscina, vejo-o chegar com um saco de carnes. Na passada, assoviando, ele ameaça pisar em minhas pernas e fala: “vidão, hein”. Apenas para seguir em frente, com a imensa tranqüilidade que sempre lhe foi peculiar. Disse: “vamos ali, assar essas belezinhas”. Trazia consigo sempre alguma coisa para mim ou meu irmão: pães, revistinhas, peixes, briquedos. O Atari e o primeiro Reebok chegaram a nós por meio dele.
A maioria dessas lembranças vem dos verões nos quais passamos juntos. De certa forma, tudo era um contínuo verão: meus primos, a lancha, Cabo Frio, Juva, camarões, a praia do Forno. Sempre fazendo beliscos, bebidinhas e sorrindo. Ele sorria muito.
Ir para a Região dos Lagos era uma viagem que adorávamos. O que me enchia de alegria era quando cruzávamos a ponte da Casa da Ilha. Um caminho que, creio, me é impossível esquecer.
Certa vez, no começo desta década, ele reuniu toda a família em uma Semana Santa em Angra dos Reis. O mar sempre foi um de seus assuntos favoritos. Gostava de praias, pescarias e tudo que tivesse ligação com o sabor da maresia. Lembro-me de suas descrições sobre como era fisgar um “Peixe de Bico” no oceano distante. “Só dá na água roxa”, ele dizia. Vivia tudo aquilo intensamente. Sua diversão ia além da pesca propriamente dita: apreciava os preparativos, os amigos. Não lhe importava se voltássemos vazios, sem pescar nada. Valia a alegria do encontro.
Nos anos difíceis, foi um dos poucos a ficar perto de nós. Manteve a graça e continuou a viver como se nada houvesse acontecido - era um mestre nessa arte. Lembro-me de ter precisado vender meu carro, ficando a pé por um bom tempo. Ele me emprestou um Escort XR3 velho como só, “um homem precisa de rodas”, dizia. Anos depois, quando vendi o escortinho e fui acertar as contas, ele disse: “fique com o dinheiro, o velho XR3 já era seu a muito tempo”. Respondi de imediato: “Obrigado, tio, as coisas andam difíceis”. Ele me sorriu. “Não se preocupe, sempre melhora”, respondeu.
Viveu em sossego consigo. Um sossego próprio, isolado.
Nossas conversas aconteciam sempre de modo “silencioso”. Ele possuía uma maneira incomum de perceber as coisas e responder ao que era questionado. Quase sempre, trazia respostas curtas, precisas. Talvez este dom, o da compreensão absoluta do todo, tenha sido seu maior talento. Quiçá, aliado a sua alegria, seja o que eu vá sentir maior falta.
Aliás, a falta é dos sentimentos que mais incomodam. Sobre isso, recordo-me de um conto escrito por Julian Barnes. Chama-se "Eternamente" e trata da irmã de um soldado inglês que morrera na Primeira Guerra Mundial e fora enterrado na França. Em uma visita ao cemitério, ela “retirou a ultrajante grama francesa e substitui-a pela grama inglesa mais macia” sobre a sepultura de seu irmão. No ano seguinte, porém, ela constatou, desolada, que seu trabalho fora desfeito: “a grama francesa voltara". Os mortos morrem para sempre, óbvio. Malgrado nosso esforço, a vida segue, mas eles não voltam.
Ocidentais que somos, temos um relativo conforto em lembrar que continuam vivos no chavão de nossas memórias. Sobre o mesmo assunto, outro autor, Roland Barthes, escreveu certa vez: "A morte, a verdadeira morte, é quando morre a testemunha mesma. Chateaubriand diz de sua avó e de sua tia-avó: 'talvez seja eu o único homem do mundo a saber que essas pessoas existiram': sim, mas como ele o escreveu, nós também o sabemos, desde que pelo menos leiamos ainda Chateaubriand".
Talvez, por isso, redigi esse texto. Uma tentativa de matar a morte, curar a dor. Enquanto houver alguém que passe por aqui e leia o que escrevi, haverá um Tio Sérgio para recordar. Na verdade, difícil saber o que dói mais: a perda ou esse maldito egoísmo que nos faz querer que eles fiquem para sempre por aqui. De qualquer modo, deixo minha singela – e última - homenagem. Obrigado por tudo, meu velho. Deslize suavemente até o grande Pai, tenha paz.
Mesmo com nossa inicial correria em busca de passagens e de acomodar os compromissos diários, não foi possível ir até o Rio de Janeiro. A brutalidade da doença e o sofrimento final recomendavam uma cerimônia rápida e inconciliável com os horários dos aviões.
De certa forma, é estranho e difícil juntar os cacos quando se está longe. Pois é.
Tio Sérgio era calado, taciturno até, mas adorava viver. Tinha a casa sempre cheia, gostava de vê-la desse modo. Em geral, nos muitos verões em que viajávamos todos, havia sempre cervejas, churrascos e alegria.
Nasceu no Rio de Janeiro, Itaboraí, em casa, como se costumava fazer antigamente. Incapaz de brigar – abominava confusões -, era um dos maiores conciliadores que conheci. Possuía, ainda, um total fascínio pelo que era novo. E, por isso, foi a pessoa mais absolutamente sem rancor que jamais conheci.
A memória mais antiga que possuo para com ele é a de um churrasco em particular. Começo dos anos 80, no sítio em Itaboraí. Estou na piscina, dia azul-dourado (o carioca entende), 40ºC, início de verão no Rio de Janeiro. Sentado em uma bóia, com metade das pernas na borda da piscina, vejo-o chegar com um saco de carnes. Na passada, assoviando, ele ameaça pisar em minhas pernas e fala: “vidão, hein”. Apenas para seguir em frente, com a imensa tranqüilidade que sempre lhe foi peculiar. Disse: “vamos ali, assar essas belezinhas”. Trazia consigo sempre alguma coisa para mim ou meu irmão: pães, revistinhas, peixes, briquedos. O Atari e o primeiro Reebok chegaram a nós por meio dele.
A maioria dessas lembranças vem dos verões nos quais passamos juntos. De certa forma, tudo era um contínuo verão: meus primos, a lancha, Cabo Frio, Juva, camarões, a praia do Forno. Sempre fazendo beliscos, bebidinhas e sorrindo. Ele sorria muito.
Ir para a Região dos Lagos era uma viagem que adorávamos. O que me enchia de alegria era quando cruzávamos a ponte da Casa da Ilha. Um caminho que, creio, me é impossível esquecer.
Certa vez, no começo desta década, ele reuniu toda a família em uma Semana Santa em Angra dos Reis. O mar sempre foi um de seus assuntos favoritos. Gostava de praias, pescarias e tudo que tivesse ligação com o sabor da maresia. Lembro-me de suas descrições sobre como era fisgar um “Peixe de Bico” no oceano distante. “Só dá na água roxa”, ele dizia. Vivia tudo aquilo intensamente. Sua diversão ia além da pesca propriamente dita: apreciava os preparativos, os amigos. Não lhe importava se voltássemos vazios, sem pescar nada. Valia a alegria do encontro.
Nos anos difíceis, foi um dos poucos a ficar perto de nós. Manteve a graça e continuou a viver como se nada houvesse acontecido - era um mestre nessa arte. Lembro-me de ter precisado vender meu carro, ficando a pé por um bom tempo. Ele me emprestou um Escort XR3 velho como só, “um homem precisa de rodas”, dizia. Anos depois, quando vendi o escortinho e fui acertar as contas, ele disse: “fique com o dinheiro, o velho XR3 já era seu a muito tempo”. Respondi de imediato: “Obrigado, tio, as coisas andam difíceis”. Ele me sorriu. “Não se preocupe, sempre melhora”, respondeu.
Viveu em sossego consigo. Um sossego próprio, isolado.
Nossas conversas aconteciam sempre de modo “silencioso”. Ele possuía uma maneira incomum de perceber as coisas e responder ao que era questionado. Quase sempre, trazia respostas curtas, precisas. Talvez este dom, o da compreensão absoluta do todo, tenha sido seu maior talento. Quiçá, aliado a sua alegria, seja o que eu vá sentir maior falta.
Aliás, a falta é dos sentimentos que mais incomodam. Sobre isso, recordo-me de um conto escrito por Julian Barnes. Chama-se "Eternamente" e trata da irmã de um soldado inglês que morrera na Primeira Guerra Mundial e fora enterrado na França. Em uma visita ao cemitério, ela “retirou a ultrajante grama francesa e substitui-a pela grama inglesa mais macia” sobre a sepultura de seu irmão. No ano seguinte, porém, ela constatou, desolada, que seu trabalho fora desfeito: “a grama francesa voltara". Os mortos morrem para sempre, óbvio. Malgrado nosso esforço, a vida segue, mas eles não voltam.
Ocidentais que somos, temos um relativo conforto em lembrar que continuam vivos no chavão de nossas memórias. Sobre o mesmo assunto, outro autor, Roland Barthes, escreveu certa vez: "A morte, a verdadeira morte, é quando morre a testemunha mesma. Chateaubriand diz de sua avó e de sua tia-avó: 'talvez seja eu o único homem do mundo a saber que essas pessoas existiram': sim, mas como ele o escreveu, nós também o sabemos, desde que pelo menos leiamos ainda Chateaubriand".
Talvez, por isso, redigi esse texto. Uma tentativa de matar a morte, curar a dor. Enquanto houver alguém que passe por aqui e leia o que escrevi, haverá um Tio Sérgio para recordar. Na verdade, difícil saber o que dói mais: a perda ou esse maldito egoísmo que nos faz querer que eles fiquem para sempre por aqui. De qualquer modo, deixo minha singela – e última - homenagem. Obrigado por tudo, meu velho. Deslize suavemente até o grande Pai, tenha paz.
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